Nem tudo que dói é doença: como a psicanálise escuta o sofrimento sem diagnóstico
Em tempos marcados pela lógica da produtividade e da performance, é comum que nossas dores emocionais sejam rapidamente interpretadas como falhas, distúrbios ou disfunções. A cultura do diagnóstico, embora importante para muitos casos clínicos, também pode nos afastar da singularidade de cada sofrimento. Afinal, nem toda dor é doença — às vezes, é apenas um pedido silencioso de escuta.
Essa é uma ideia central dentro da psicanálise, que desde Freud (1917/1996) compreende o sofrimento psíquico como parte constitutiva da experiência humana. Freud afirmava que a psicanálise não busca apenas curar, mas "tornar suportável o sofrimento da vida”. Isso significa que, ao invés de suprimir o sintoma, a escuta psicanalítica propõe compreender o que ele tem a dizer.
Sintoma: um pedido de sentido
Para a psicanálise, o sintoma é uma formação do inconsciente. Ele não é apenas algo a ser eliminado, mas algo que carrega um sentido inconsciente, uma mensagem cifrada da história do sujeito. Como disse Lacan (1953/1998), o sintoma é “aquilo que vem no lugar da verdade recalcada”.
Sendo assim, não é incomum que pessoas cheguem ao consultório sem um “transtorno” definido, mas com uma sensação de desalinho:
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Uma tristeza que não tem nome;
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Um sentimento de inadequação constante;
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Relações afetivas que se repetem e terminam da mesma forma;
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Um vazio que persiste mesmo quando tudo parece estar no lugar.
Esses elementos, muitas vezes, não são enquadráveis em diagnósticos prontos, mas falam de uma dor real, que merece escuta, acolhimento e elaboração.
O risco da medicalização do sofrimento
A psiquiatra e pesquisadora Maria Rita Kehl (2009) discute o quanto a sociedade contemporânea tende a medicalizar o mal-estar, oferecendo medicamentos ou rótulos diagnósticos para aquilo que, na verdade, pode ser escutado, atravessado e simbolizado. Quando rotulamos rapidamente uma dor psíquica como “doença”, corremos o risco de silenciar o sujeito, apagando a história singular que dá sentido a esse sofrimento.
Não se trata de negar os transtornos mentais ou sua importância clínica — ao contrário. O que se propõe é não reduzir toda experiência de sofrimento à lógica diagnóstica, reconhecendo que há mal-estares existenciais, conflitos subjetivos, e crises simbólicas que não se encaixam em classificações, mas que demandam escuta.
A escuta psicanalítica como cuidado ético
Na clínica psicanalítica, o terapeuta não escuta para dar conselhos ou para apontar o que está certo ou errado. Escuta para oferecer um espaço onde o sujeito possa, finalmente, escutar a si mesmo. A fala livre, a associação de ideias, os silêncios e repetições — tudo isso é acolhido sem julgamento, permitindo que o paciente construa sentidos próprios para aquilo que vive.
Essa escuta ética e implicada possibilita que o sintoma deixe de ser apenas um incômodo e se torne uma via de acesso à própria verdade subjetiva.
Considerações finais
Buscar terapia não é sinal de fraqueza ou de que há algo “errado” com você. É, antes de tudo, um gesto de cuidado. Um desejo de se escutar, de entender suas dores e encontrar caminhos que façam mais sentido para você.
Se há algo que te incomoda, mesmo que você não saiba nomear… talvez esse seja o momento de escutar esse pedido silencioso.
Referências
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Freud, S. (1996). Sobre o início do tratamento. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1917).
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Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Original publicado em 1953).
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Kehl, M. R. (2009). O tempo e o cão: A atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo.
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